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quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Brumado

Ofereço como homenagem e gratidão à memória dos foliões Geraldo Teixeira e Vico, e  ao casal amigo José Marcos e Maria José, mestres do saber.


            Bruma é neblina, serração, névoa. Brumado é o lugar que tem brumas, nevoeiro. Estas palavras revestem-se de uma poesia natural e revelam um ponto do distrito de São Gonçalo do Amarante, em São João del-Rei, com um bucolismo bem condizente com sua paisagem neblinada no inverno.

            A própria vila de São Gonçalo do Amarante chamou-se em sua origem São Gonçalo do Brumado. Perdido o topônimo original permaneceu contudo o termo em epígrafe em uso noutros pontos distritais, a saber:

- Brumadinho: pesqueiro na foz do Ribeirão do Brumado com o Rio das Mortes, acerca do km 122 da antiga Ferrovia Oeste de Minas, “Linha do Sertão”. Tem duas ou três fazendas próximas;
- Brumado: povoação próxima à vila de São Gonçalo, com dois agrupamentos de residências, um num vale bem definido por morros altos (“Brumado de Cima”) e outro junto ao baixio que serve de leito ao ribeiro supracitado (“Brumado de Baixo”).

            No passado oitocentista o coração desse lugar estava na Fazenda do Brumado, uma antiga construção rural ainda de pé, se bem que com aspecto hoje modificado, que reunia escravaria para trabalhos de plantação, cria e lavra. Vestígios da senzala são visíveis em alicerces de pedra e ainda um represamento de um dos afluentes do Ribeirão do Brumado, destinado a trabalhos de mineração.

            A passagem de sucessivas gerações e donos imprimiu mudanças arquitetônicas na construção e divisões territoriais que fizeram surgir sítios e chácaras em derredor, portanto, o núcleo embrionário desse povoado.

            O meio de vida pouco difere de outras localidades são-joanenses e porque não dizer regionais, com uma pequena produção agrícola e pecuária de subsistência, alcançada por métodos tradicionais de produção, o que diante do quadro econômico imperativo do século XX não abriu perspectivas para seus moradores. Alguns lidam com o artesanato, para inteirar a renda da família.

O êxodo rural era inevitável e suas sequelas são bem conhecidas na roça e na cidade. De cerca de quinze casas no Brumado de Cima, apenas três tem moradores fixos. As demais são ocupadas em alguns dias da semana ou só nos fins de semana. A situação do Brumado de Baixo é a mesma: de uma dezena de casas só três tem ocupação permanente, segundo observação pessoal em julho de 2009.  

Para quem ficou no Brumado, além do trabalho de subsistência no cultivo e criatório como já dito, o caminho também é prestar serviço para sítios e fazendas da região em trabalhos de capinar plantações, roçar pastos, manutenção de benfeitorias (moinhos, currais, cercas, silos, valos d’água, muros de pedra), paga a diária do trabalhador por cerca de 40 a 50% do valor do trabalhador autônomo na cidade. Não resta dúvida que tal situação serve de absoluto desestímulo à permanência do homem no campo.

Outros fatores pesam a favor do êxodo. A escola local fechou as portas e hoje jaz abandonada em meio do mato e de poços de água. As crianças tem agora de se deslocar à vila de São Gonçalo do Amarante ou ao arraial da Trindade, ambos a uma légua de distância. Ainda assim só se pode contar com o ensino fundamental, sendo depois obrigadas a recorrer à cidade para continuidade do estudo.

As estradas são via de regra ruins.

A luz elétrica chegou por volta de 2004 segundo dizem os moradores.

Não há linha fixa de transporte coletivo. É necessário pegar o ônibus da Trindade ou o de São Gonçalo, com pontos de parada distantes.

Uma tradição local que se encontra desaparecida é a das folias, grupos folclóricos ali rastreáveis apenas por notícias orais. Foi afamada na década de 1960 a folia de Geraldo Marcelino Vieira, popularmente conhecido por “Geraldo Teixeira” que no Brumado de Cima foi folião afamado. Seu grupo andava normalmente como é comum na região para os Santos Reis e São Sebastião, mas também para o Divino e ainda para o santo violeiro, São Gonçalo do Amarante. Esta é uma das raríssimas Folias de São Gonçalo do Amarante de que se tem notícias.

Outro grupo local do Brumado de Cima foi a folia do sr. Flávio Francisco Alves, carinhosamente conhecido por “Vico”, que teve uma Folia de São José cuja arrecadação e anúncio se voltavam para a Igreja de São José Operário, no bairro Tijuco, na sede municipal.

Uma tradição ainda forte nessa região é a da medicina popular. O uso da fitoterapia é o remédio de todas as horas. Com a senhora Maria José da Silva Oliveira, a conhecida e dedicada rainha de congado “Maria da Pinta”, moradora local, colhi relevante receituário popular em 25/07/2009:

Infusões alcoólicas: (esfrega-se na área afetada)

1-         Cravo-defunto com arruda: sinusite
2-         Melão de São Caetano: picada de insetos
3-         Caldo de mandioca: creme dermatológico
4-         Carobinha: sarna
5-         Camboatá com capim-gordura: mialgia, reumatismo, coluna, joelho, juntas
6-         Folha de mandioca com cuité do campo: coluna
7-         Caroço de abacate ralado: coluna, reumatismo

Fortificante:
-          1 talha (fatia larga) de marmelada
-          1 frasco de Biotônico Fontoura
-          2 ovos de pata / codorna
-          1 lata de leite condensado
-          3 colheres de mel
Bate tudo no liquidificador e acondiciona em vidro esterilizado na geladeira. Tomar 1 colher por dia.

Bronquite:
1- Mamão grande, verde. Cortar uma tampa e deixar a semente. Põe dentro 1 cebola média ralada, 3 colheres de mel, ½ copo de açúcar mascavo, 4 ramos de hortelã, um punhado de flor de mamão de corda (macho), um punhado de flor de laranjeira e de limão, ½ dúzia de flor de fruta do lobo, uma mão cheia de folhas de elevante e poejo. Tampar com a tampa do próprio mamão, prendendo-a com palito. Por numa forma de bolo levar em forno quente até escorrer caldo. Coar e por em vidro esterilizado.

2- Pegar um ovo de galinha preta e na Sexta-feira da Paixão abrir um tampo e cuspir dentro dele. Colocá-lo dentro de uma meia preta e pendurar em cima do fogão à lenha, onde pega fumaça.

3- Cuspir na boca de um peixe vivo e soltá-lo no rio para levar embora.

4- Trocar dinheiro do bolso por uma esmola de equivalente valor, que tenha sido coletada pelos meninos que, na Semana Santa, batem matraca na porta das igrejas e pedem ofertas para a para a cera do Santo Sepulcro. Na hora de trocar tem que pedir ao menino da igreja que o faça “pelo amor de Deus”. Com esse dinheiro comprar algo comestível para a criança com bronquite e deixá-la comer à vontade. O que sobrar jogar no Córrego do Lenheiro de cima da Ponte do Rosário na hora da passagem da Procissão do Enterro e dali acompanhar até o fim aquele piedoso cortejo.

Maria disse-me ainda que era costume no passado os pais darem banho de sangue de tatu nas crianças para lhes fortalecer e retirar o risco de contrair lepra. E por falar em banhos, para o descarrego ensinou-me o de folhas da congonha conhecida por ticongô, ou ainda da planta chamada solidônia, capazes de, se fervidas e convertidas depois de mornas em banhos, retirar todo mal olhado, forças negativas, maré de azar.

Seu esposo, José Marcos de Oliveira é um artista no manuseio da madeira, fazendo bons trabalhos artesanais de peças importantes na lida rural.

O casal forma ainda uma boa dupla de cantadores de calango e modas.

A vida simples no Brumado reserva muito saber além da tranquilidade. Esquecido por sucessivas administrações, pelejando por melhorias vê a cada dia seus moradores buscarem melhores possibilidades na cidade.

Mas o conhecimento popular ainda persevera na memória coletiva, resistindo ao desaparecimento. Falta-nos ainda valorizá-lo devidamente e quiçá não possa ser uma fonte de recursos para os moradores.  

Brumado de Cima e ao fundo a Serra do Lenheiro,
São João del-Rei/MG, 24/07/2009.

 Notas e Créditos

* Texto e fotografia: Ulisses Passarelli

2 comentários:

  1. Ulisses, parabéns pelo seu excelente trabalho. Que texto primoroso!!! Grande talento literário.

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